Autor(es): Marilia Arnaud
“NO ESCRITÓRIO, O SILÊNCIO DO RÁDIO ME FERIA OS OUVIDOS;
uma capa de abandono envolvia a escrivaninha, a caderneta de anotações, as pastas com recibos de pagamento, recortes de jornais, documentos. Guardiã do teu tormento, eu temia o pior: a doença grave, a loucura, a morte. Não eras o mesmo homem; haviam te roubado uma parte demasiadamente grande da alma. Estavas ali e não estavas, apartado de nós por um muro tão alto quanto intangível. Perguntava-me em que maldito tanque haviam sufocado os teus sonhos, com que punhal desgraçado amputado a tua língua. E até o fim, o voto de silêncio que te impuseste – o mesmo, imagino, que ofereceste aos homens de farda e coturnos – me fez sangrar segundo a segundo, como se eu andasse amarrada em cordas de caroá.
AO RETORNAR A NOSSA SENHORA DAS PEDRAS, A ARTISTA
plástica Ramona de Maria empreende uma viagem pelo universo da memória, em uma narrativa lírica em que a família, os afetos, a infância marcada por episódios locais – a festa da padroeira e a passagem dos povos ciganos –, a intimidade com a natureza e a iniciação na arte da pintura são atravessados pela inóspita realidade da ditatura deflagrada com o golpe militar de 1964. Uma história sobre segredos, mentiras e traições. Um acerto de contas com a vida.“
PARA COMEÇAR,HÁ O PRAZER DO TEXTO — que nos leva da primeira frase ao ponto final sem pestanejar, seguindo a corrente rítmica de uma canção do tempo que vai e vem entre sonhos e pedras nos intricados caminhos da protagonista da história, Romana de Maria, uma órfã afortunada pelo amparo de um avô viúvo e de duas tias solteironas. É quando ela ganha um sobrenome e passa a viver o seu conto de fadas numa casa senhorial de uma vila entre o mundo urbano e o rural, a guardar o passado de quem nela habitou como um quadro na parede, que dói: o quadro de uma cigana, a avó que não chegou a conhecer, dita a moça mais bonita que já passara por aquele lugar – uma ninfa de Peloponeso, livre como uma borboleta -, de sina obscura, para não dizer infeliz, e de quem iria herdar a veia artística, pois pintora Ramona também se tornaria. E daí se encorajando a partir para um grande centro, de onde um dia iria voltar, quando tudo, ou quase tudo, já se tornara memória.
Marilia chega ao seu quarto romance, gênero em que vem se destacando na literatura brasileira contemporânea pela engenhosidade na construção dos seus cenários
e personagens, cujos nomes, na maioria dos casos deste Esboço em pedra e sonho, são um capítulo à parte; pela urdidura irretocável de seus enredos, conquista de linguagem e domínio de estilo.
Somemos a esses predicados as armadilhas inelutáveis que a vida trama a cada personagem, cada qual com a sua bravura, seu medo, segredos, zonas de sombra – do avô às tias, do médico de família a Tom de Mefisto, a perfeita encarnação do artista como outsider no meio extremamente arcaico da cidade de Nossa Senhora das Pedras. Sem esquecermos os seus amigos da adolescência Téo e Concita, com quem Ramona forma um triângulo espinhoso.
E aqui fica este esboço de leitura como um convite a uma viagem pelas fascinantes páginas de Marilia Arnaud, salve ela!
ANTÔNIO TORRES